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Crimes de guerra

Mais uma vez estamos a vivenciar um dos muitos momentos bárbaros na história da (des)umanidade. Independentemente de todas as razões políticas e históricas de parte a parte que sejam consideradas como justificação, o certo é que a oligarquia russa no poder e seus políticos e aliados militares com Putin ao comando desta orquestra macabra, está destruindo reservas naturais, infra estruturas, empresas, hospitais, escolas, bairros de habitação, cidades inteiras, famílias como eu e tu – praticando verdadeiros atos de terrorismo de estado. O que me impressiona é que se esteja falando de “crimes de guerra” como se toda a guerra, ela mesma, não fosse um crime. É como se estivéssemos a dizer ao invasor: – Façam guerra mas com ética!

Numa guerra não há ética.      

Mas a pergunta que se me põe é esta: como é isto possível? Como é possível que se cometam tais atrocidades? Como é possível que pais com mulher que amam e filhos em casa, como eu e tu, que festejam, como eu e tu, o natal debaixo da árvore no ambiente de sensibilidade e amor, que abraçam e se enternecem com os seus entes queridos, como eu e tu, capazes de dar a vida pelo melhor amigo, como eu e tu, cometam tais barbaridades?

Como é isto possível? Qual é a estrutura no ser humano que permite tais comportamentos?

Para perceber o mecanismo adjacente a todos estes atos bárbaros cometidos na Ucrânia pelos russos responsáveis e, muito provavelmente, pelos próprios ucranianos, há que investigar o processo natural (des)umano das relações sociais. Como nos relacionamos no dia-a-dia uns com os outros?

Não é difícil de entender que nas nossas relações sociais não reagimos diretamente ao outro, reagimos sim à representação mental que fazemos do outro. Reagimos a um cigano, a um negro, a um palestiniano ou israelita, a um gay, a um chefe, a um político, de acordo com a imagem que construímos do outro em nossa mente. O processo natural nas relações sociais consiste na criação mental de representações com um conjunto muito limitado e controlável de variáveis que representam o outro para que assim estejamos em estado de comunicar. Comunico de acordo com o conjunto de características que inventei sobre o outro mais ou menos por acaso, características essas que são o resultado de infinitas condicionantes sociais e familiares praticamente incontroláveis. Na prática, a comunicação com o outro funciona como se a representação que criei sobre o outro me dê instruções de como lidar com a situação.

E isto geralmente é suficientemente funcional na nossa vida do dia-a-dia. O problema só se põe quando a imagem que construímos parece não coincidir com o outro na nossa frente.

Ok. Um russo em combate age de acordo com a imagem que tem em mente do que é um ucraniano. E vice-versa. Mas mais exatamente, em que consiste esta imagem para que um militar (ou mesmo civil) possa matar a sangue frio e cometer até as maiores atrocidades? Segundo Lucas Derks, autor do Panorama Social, uma metodologia que faz parte da nova psicologia do Espaço Mental, é preciso para isso que se desumanize o adversário. E para perceber isso teremos primeiro de perceber o que é um ser humano, quais são as características que nos fazem classificar X como sendo uma pessoa?

Segundo o Doutor Lucas Derks, para que uma pessoa possa ser considerada como pessoa, ela terá de ser “personificada” mentalmente com características tais como a capacidade de ver, ouvir, sentir, construir imagens e sons, ter toda a espécie de competências, ser capaz de ter sensações e emoções, perspetivas, autoconsciência, razoabilidade, motivos, um nome, ligação espiritual, raízes sociais, uma localização e forma no espaço e no tempo, etc.. Ora para que estejamos perante um X desumano, é muito simples, basta destituir mentalmente a pessoa destas características humanas.

Lembro-me de um exemplo de Lucas Derks, não sei se de um livro se de um curso, em que ele contou que em tempos num estado americano foi proibido disparar nas cidades, com duas exceções: índios e lobos. O exemplo fala por si. Qual é a representação mental de um lobo e de um índio para um americano da época?

Tirando conclusões: é muito fácil construir assassinos, basta para isso criar um contexto (geralmente um estado de repressão absoluta, autoridade ditatorial e medo, que controla toda a informação) e utilizar todos os conhecimentos atuais de reclame, comunicação, marketing, media, redes sociais, etc. com um único intuito: implantar nos militares e no povo uma imagem do inimigo de que estão ausentes elementos constituintes de uma personificação humana. E assim o adversário deixa de ser constituído por pessoas e passa a ser um bando de nazis, terroristas, violadores, traidores, etc., que será absolutamente necessário aniquilar para o bem geral e salvação da nossa nação!

E há ainda um elemento final que oferece a garantia de sucesso nesta conspiração – o contexto. Geralmente atribuímos nesta sociedade individualista grande importância à responsabilidade pessoal pelos nossos atos e livre arbítrio. A questão é que também a responsabilidade pessoal e o livre arbítrio são muito menores do que pensamos. Há cada vez mais provas concretas, tanto no campo de guerra como experimentalmente, da influência do campo contextual no nosso comportamento. O contexto, e certamente o contexto de guerra, tem transformado russos ou americanos bondosos pais de família em bárbaros.

E como se explica que apesar de toda a horrenda propaganda de exterminação do inimigo e do contexto desumano feita pelos políticos do aparelho do estado e seus colaboradores, aconteça que algumas pessoas nesses momentos decisivos se mantenham imunes, não sejam afetadas pela propaganda e continuem sendo livres-pensadores de coração aberto e firmes, empáticas e envolvidas em compaixão? Será devido aos genes? Auto conhecimento? Ao Karma?

Talvez seja esta a pergunta fundamental e mais geral:

Como, no meio de toda a espécie de propaganda pela qual somos 24 horas por dia rodeados, proteger em nós e nas nossas construções mentais dos outros, as características que fazem de nós e dos outros, seres humanos inteligentes, responsáveis, capazes de amor e empatia?