Há certas coisas fundamentais que supostamente sabemos sobre nós. Duas delas permitem-nos extrair conclusões radicais sobre a nossa aparente existência e sobre aquilo a que chamamos mundo.
O que julgamos saber de essencial parece ser isto:
- Somos o resultado de um processo automático biológico natural;
- e somos o resultado de uma mente que é um conjunto de ideias interligadas umas com as outras de forma arbitrária construídas a partir de seres familiares, sobretudo de infância, e outras autoridades que, por sua vez, nada mais são que produtos de imaginação, mas… com um grande impacto na nossa vida. Quer dizer e resumindo, somos um conjunto de crenças criadas a partir de crenças e assim sucessivamente até ao começo sem começo daquilo a que acordámos apelar de tempo.
- A outra coisa que nos foi revelada pela construção virtual a que chamamos neurociência é isto: não temos escolhas nenhumas e que tudo obedece a um processo fora do controle consciente.
Os processos biológicos e neurológicos que dão origem às construções mentais, entre as quais a crença de que temos poder de escolha deram origem a algo a que nós chamamos eu e mundo e, de forma obsessiva, tudo fazemos como se este eu e o mundo fossem reais. Pior ainda, criámos todo um contexto quimérico a que apelidámos de psicologia, sociologia, filosofia, economia, justiça, politicologia, física, arquitetura, matemática, etc., para nos fazer acreditar que existimos realmente, quer dizer, encobrir que tudo não são mais que construções mentais, e que temos controle sobre algo de que não temos a mínima ideia do que é, quer dizer, a vida.
Como parece toda a gente acreditar na sua própria imaginação e tudo tem lugar num espaço denominado realidade devidamente organizada com as suas leis e costumes que são engolidas com a papa desde a infância e consolidadas nas escolas, universidades, instituições e empresas, são fornecidas continuamente provas a nós mesmos de que tudo é realmente como imaginamos que nós e as coisas são, praticamente sem forma de lhes escapar e, claro, tudo isto se vai traduzir num teatro pessoal e social generalizado caracterizado por desgaste, depressão, burn out e frustração com consequências psicóticas crescentes.
Na prática, apesar de ser imaginação, isto tem efeitos. Concretamente:
- Estabelecemos objetivos que se afiguram que, se realizados, perdem o significado e obrigam a novos objetivos em um loop frustrante, infinito. Ou construímos objetivos que acabam por se afigurarem irrealizáveis devido à essência da natureza dos próprios processos naturais incontroláveis – é que, na verdade, ao que parece, tudo se desenrola de forma automática, fora do nosso controle, dentro de um espaço que não conhecemos realmente, a própria vida. O que julgamos conhecer é fruto de construções imaginárias à volta de algo a que chamámos, no seguimento dos nossos pais e professores, eu e mundo, o qual inclui os outros.
- O segundo ponto, já atrás mencionado, tem a ver com o anterior. É a ilusão de livre arbítrio, de livre escolha. Sem esta ilusão não se iriam estabelecer objetivos e praticamente todas as populares intervenções em coaching e terapia (mas também em política ou finanças ou todas as outras fantasias humanas) cairiam por terra. Na verdade, já poderia ser da consciência geral que todas as aparentes decisões são o resultado daquilo apelidado em psicologia como “inconsciente” e que o neocórtex atribui a si próprio a decisão alguns décimos segundos depois de a decisão ter sido inconscientemente tomada.
- A necessidade de controle, algo irrealizável, a nível micro e macro, é a causa da exaustão individual e dos fracassos dos sistemas estabelecidos. Não é necessário gastar muita palavra sobre o assunto. Qualquer aparente indivíduo ou aparente organização política, humanitária, lúdica, religiosa, poderia já estar razoavelmente consciente da inutilidade na crença de que tem controle sobre o processo e resultados dos seus atos. Mas inevitavelmente o aparente indivíduo está condenado a não poder pôr um ponto final ou retirar-se da estrada em que se meteu mais ou menos a partir dos três anos de idade. Desistir, se isso fosse possível para o ser imaginário que somos, seria um pôr fim à ilusão e isso é impensável num crente que, por natureza da própria crença, é sempre dogmático e tira da própria crença o significado da sua existência.
- Um quarto ponto, diretamente ligado à formulação de objetivos, é a natureza da crença milenária, em suas diversas formas religiosas e espirituais, da salvação (sucesso, realização, felicidade, paz) no futuro. A única esperança é que o crente atinja um ponto de frustração e desespero tal que o leve a ter juízo, o que equivaleria à cessação do processo imaginativo do vir a ser e, sem reservas, entregar-se ao processo do aqui e agora que experienciamos como sendo vida.
Todas estas possíveis constatações feitas até aqui não obedecem a critérios de testabilidade cientifica. Elas são não só inaceitáveis, como sem consequências
- Primeiro, porque não são verdades (é impossível conhecer a verdade do universo na medida em que somos um simples produto desta aparente totalidade imensa e tudo o que percebemos é o resultado de uma construção mental da forma como os nossos sentidos estão organizados e do próprio automatismo do funcionamento psicológico).
- Segundo, imaginemos que todos perceberíamos o truque do sonho de afirmação, poder e reivindicação do ego e da nação. Isso significaria o fim de todos os nossos sonhos, devaneios e esforços, e o fim da sociedade atual nas suas diversificadas formas capitalistas, socialistas, liberais, comunistas, ou qualquer outra utópica ou distópica denominação acabada em “ista”. Ora claro que isto é absolutamente inaceitável na ordem social estabelecida.
Imagine o que seria para coisas como casamento e família, pais e filhos, chefes e subordinados, polícias e ladrões, justiça, carreira, partidos políticos, escola e universidade, governos, repúblicas e monarquias, conceitos de nação, democracia, sucesso, desenvolvimento e progresso, etc… imagine se, de repente, fossemos “iluminados”, quer dizer, todos magicamente tivéssemos a consciência plena de que tudo isto neste matrix, nesta aparência de nós e fora de nós, se trata unicamente de um processo mental arbitrário incontrolável que tomamos por realidade… imagine se, repentinamente, tivéssemos então simplesmente a consciência de que se trata de uma grande teatrada sem sentido… Imaginem só o que seria!
Mas nada de pânico. Esforçamo-nos tanto, tanto, que aquilo que entra pelos olhos dentro é o mais difícil de ser visto. E, por outro lado, por mais conscientes que sejamos não temos escolha, é um processo, continuaremos a pensar, imaginar e agir porque não podemos fazer de outra maneira, é a nossa natureza. Tudo continuará como é.
J. F.
(meditação a partir de conceitos de PNL, Advaita, Tony Parsons e Andreas Muller)