Quem sou eu? Esta ideia de “eu” e, de forma implícita, a ideia do outro e do mundo, é uma ilusão criada pelo cérebro a partir de tenra idade e fortalecida através dos anos pela experiência ilusória do dia-a-dia, experiência essa inculcada pela família, escola, amigos e toda a estrutura social. Deram-nos um nome na infância, não tínhamos alternativa se não acreditar nisso. Ao mesmo tempo começámos, desde então, a tomar consciência de pensamentos, sensações e ações. O nosso cérebro encarregou-se de considerar estas vivências e pensamentos, os quais têm lugar de forma automática independentes da nossa vontade, como tendo origem em um mim separado do outro, um ego-consciência, um “eu”, uma personalidade, um caráter… Este eu, ego, pessoa, personalidade, consiste portanto num processo de identificação com pensamentos, sensações, emoções e ações, coisas estas que emergem involuntariamente na consciência e a que, de forma natural, atribuímos um “eu” como sendo a causa.
A esta ilusão da existência de um “eu” como autor independente com livre arbítrio e, simultaneamente, a crença na existência real de um aparente mundo separado (que é impossível de provar pois todo o conhecimento que temos desse aparente mundo é uma construção mental, não conseguimos aceder a nada para além disso), é o tema da “não dualidade”.
A não dualidade ou não dualismo, é conhecida por estes dois termos, é uma abordagem, digamos, filosófica e espiritual que afirma que a realidade é essencialmente una, um todo indivisível e sem um segundo, e que todas as dualidades são ilusórias. São um fruto da ignorância como é afirmado correntemente pelos seguidores da Advaita Vedanta (escola filosófico-religiosa conhecida, sobretudo, pelos trabalhos de Sri Shankara). Aliás, falar de unidade, todo indivisível, infinito, ou falar mesmo de atman, brahman, vacuidade, deus, alá, tao, prana, ou energia vital como princípio uno e universal, ou sejam quais forem os conceitos e palavras utilizadas para desvendar ou exprimir esta coisa que nos aparece como mistério, são apenas palavras fruto de um processo imaginativo. Não confundamos o dedo que aponta a lua com a própria lua, segundo uma conhecida metáfora oriental. Na verdade, são simplesmente conceitos úteis para a sobrevivência diária mas em essência não exprimem qualquer verdade. Daí a escolha da expressão “não dual”. Podemos possivelmente de forma intuitiva e racionalmente constatar que a dualidade é uma construção mental, mas como é que as coisas são na realidade ficará talvez para sempre como um mistério.
Isto não quer dizer que as coisas não existam em absoluto, existe sim qualquer coisa, mas o que é realmente essa qualquer coisa que aparentemente existe como mundo e eu, não sabemos o que é. E como todos possuímos a mesma construção neurológica com as mesmas características e as mesmas limitações percetivas, aparentemente tudo parece real e a este nível as coisas funcionam no dia-a-dia. Desde que ninguém tome consciência da ilusão, tudo continua como é. E mesmo que se tome consciência da ilusão tudo continua da mesma forma. Porque é o que é.
Também no sonho as histórias parecem absolutamente reais. Só nos apercebemos que sonhamos depois de acordar. Aliás, precisamos mesmo desta ilusão de eu para que possamos funcionar nesta sociedade com esta aparência tão real.
A natureza não dual como condição da natureza da realidade aponta não só para a aparente oposição eu e mundo mas também para as ilusórias distinções comuns entre bem e mal, perfeito e imperfeito, guerra e paz, matéria e espírito, corpo e alma, prazer e dor e por aí fora… Todos estes conceitos, leis, definições, só funcionam na matrix, quer dizer, no mundo da aparência governado pela ilusão ignorante com seus países, governantes, empresa, organizações e massas de cumpridores e contestantes. Sem essa ilusão da existência real de um eu, apesar de nos fornecer todo o pesadelo-sofrimento que isso acarreta, não poderíamos jogar pois os nossos papéis sociais do faz de conta e que só nos parece que não são faz de conta porque fazemos deles coisas reais.
Esta ideia de não-dualidade não é coisa nova. É geralmente, como mencionei acima, associada com a tradição espiritual do Advaita Vedanta, a qual tem origem na Índia antiga e se baseia nos Upanishads, textos sagrados do hinduísmo. Segundo muitos estudiosos a não dualidade é o fundamento de todas as religiões. Encontramo-la não só na Advaita mas, por exemplo, no Budismo Dzochen e Zen, no Tao, em Master Eickhart no cristianismo e sempre estiveram presentes nas palavras de filósofos ocidentais e asiáticos. A wikipédia nomeia neste caso:
Alguns filósofos antigos e medievais (Parménides, Heraclito, Plotino, Meister Eckhart, Juliana de Norwich);
Filósofos orientais modernos (Friedrich Schelling, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Ralph Waldo Emerson, Mary Baker Eddy, Friedrich Nietzsche, F. H. Bradley, William James, Alfred North Whitehead, Buckminster Fuller, Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein, Jay Michaelson);
Filósofos e professores asiáticos (Iaghia Valkia, Lao Tzu, Zhuang Zi, Nagarjuna, Gaudapada, Shankara, Wang Yangming, Ramakrishna, Swami Vivekananda, Ramana Maharshi, Meher Baba, Paramahansa Yogananda, Krishnamurti, HVL Punsha, Maharishi Mahesh Yogi, Osho Rajneesh, Bhaktivedanta Swami Prabhupada e
Mestres contemporâneos são aos milhares das quais a Wikipédia nomeia apenas Namkhai Norbu, Byron Katie Mitchell, Eckhart Tolle, Ken Wilber e Madhukar.
Claro que o mencionado aqui na Wikipédia é apenas uma miserável amostra.
Para a maioria de nós estas revelações são incompreensíveis e inaceitáveis. Passámos grande parte da nossa vida fazendo o nosso melhor, suando para sobreviver no mundo, tentando encontrar um significado pessoal, social ou espiritual, em formação aprendendo a realizar objetivos, tentando controlar o decorrer dos processos diários, intentando ser feliz ou eliminar o desconforto, criando família e, claro, deixar um contributo para os nossos filhos, para a nação ou para a humanidade, para afinal nos apercebermos que é tudo uma ilusão. Não controlamos nada e vivemos simplesmente um sonho que para a grande maioria não passa de um verdadeiro pesadelo.
Não é por falta de informação que desconhecemos a ilusão que criámos e obstinadamente mantemos, é sim porque, na verdade, o que contamos aqui vai contra a nossa experiência diária. Vivenciamo-no como um eu perante um mundo exterior e engajámo-nos desde a infância nesse processo. E a “iluminação”, quer dizer, fazer luz sobre o este processo, não se consegue através de esforço, currículo social ou subir na hierarquia empresarial, meditação, mantras, respiração, yoga ou seja com que atividade for. É uma questão de insight, tal como naqueles estereogramas 3D: se tivermos sorte ou olharmos de determinada maneira, vemos a imagem escondida. A questão é que ela sempre esteve lá*.
*No estereograma que ilustra este artigo está representada uma girafa. Consegue vê-la?